sexta-feira, 15 de maio de 2009

SARTRE II

Não há dúvida nenhuma, se SARTRE recorreu ao teatro, foi para se fazer compreender por um público, mais vasto que o dos seus leitores. De anotar, que esta funcionalização, quiçá explique, outrossim, os limites e, porque não, as debilidades da dramaturgia sartriana.
Frequentou regularmente, na companhia de Simone de BEAUVOIR, as salas parisienses, estando atento às pesquisas do Cartel, sendo este, por sua vez, Associação conhecida sob o nome de Cartel dos quatro, fundada a 6 de Julho de 1927 por BATY, DULLIN, JOUVET e PITOËF, directores respectivos do Studio dos Campos Elísios, do teatro do Atelier, da Comédia dos Campos Elísios e do teatro dos Mathurins.
Interessante referir, que é, em circunstâncias excepcionais, que compõe o seu opus 1, cujo o texto só recentemente foi encontrado, Bariona ou le fils du tonnere. Na condição de prisioneiro, aproveita a trégua de Natal de 1940 para escrever e encenar, com os seus camaradas de cativeiro, este apólogo bíblico, onde não é difícil divisar um apelo tipicamente sartriano à responsabilidade individual, à liberdade e à resistência à opressão.

Este fio condutor, acima expendido, circulará na trama das peças que vão seguir. Todas serão, aliás, inseparáveis, concomitantemente da actualidade política e da evolução filosófica do seu autor. Eis que, uma sólida amizade com o actor, encenador e teórico francês, Charles DULLIN (1885-1949) o incita a escrever les Mouches (1943). E na esteira e peugada do incontornável escritor e autor dramático francês, Jean GIRAUDOUX (1882-1944) utiliza a mitologia clássica para realizar um discurso, simultaneamente codificado e claro, sobre o seu tempo. O mito de Oreste matricida veste, deste modo, uma denúncia da ideologia pétanista.

Após Huis Clos (1944) que coloca a questão do acto como fundador da liberdade, em termos que são os do existencialismo nascente, SARTRE se retorna ulteriormente, de modo regular, para situações e temas que lhe permitem, cada vez mais, reafirmar a responsabilidade plena do indivíduo num contexto que o rejeita. E, explicitando adequadamente temos então:
---No âmbito do problema da tortura: (Morts sans sépulture, 1946);
---Do Racismo: (La Putain respectueuse, 1946);
---Do fim e dos meios e, outrossim da manipulação dos indivíduos (Les Mains Sales, 1948).
Enfim e, em suma: a questão chave da liberdade individual no seio de uma situação de opressão permite cotejar peças como le Diable et le Bon Dieu (1951), les Séquestrés d’Altona (1959) e les Troyennes, adaptadas de EURIPIDES em 1965 no vigor e pleno calor da guerra do Vietname.

A peça Kean vinda a lume, no ano de 1953, é uma reescrita irónica e cursiva do drama homónimo do autor dramático e romancista francês, Alexandre DUMAS (1802-1870), interpela a identidade problemática do artista nas suas conexões com o poder. Enfim com Nekrassov (1955), SARTRE abordava a comédia satírica. Num à maneira do autor dramático francês, Eugène LABICHE (1815-1888) que não era desprovido de verve, fustigava a imprensa vassala das potências de dinheiro e das suas manipulações duvidosas. Lá ainda, o fio vermelho da liberdade e da identidade problemática do indivíduo. Porém, infelizmente, a peça foi muito mal acolhida. Et pour cause! Hèlas!...
A esta obra dramática, convém acrescentar uma importante recolha de reflexões sobre o teatro, designadamente, Un théâtre de situations (1973). Definiu aí a sua prática teatral em relação às referências chaves, tanto estéticas (o classicismo francês, BRECHT), como filosóficas (HEGEL) ou morais e éticas (o problema do “engagement”).

E, em complemento oportuno e avisado:
O objectivo confessado por SARTRE é de realizar um teatro “austero, moral, mítico e ritual de conspecto”. Todavia, se afigura pertinente e oportuno perguntar se este programa foi plenamente cumprido.
De feito, não obstante, o interesse que devota ao actor, escritor e encenador francês, Antonin ARTAUD (1896-1948) ou ao escritor e autor dramático francês, Jean GENET (1910-1986), o seu teatro é pouco “ritual”. E apenas “mítico” quando reutiliza, na tradição de GIRAUDOUX, COCTEAU, ANOUILH, mitos preexistentes (Les Mouches, Les Troyennes).
De anotar, que conquanto rejeite o realismo psicológico, porém, toda a sua dramaturgia assenta em personagens tradicionalmente acampadas e fortemente caracterizadas. Conserva, por outro, a maioria dos ingredientes do drama “bien fait”: o enigma, o ricochete, a revelação. Aliás, não faz mistério acerca do seu gosto pela potência da retórica. Asseverou, muitas vezes, acerca da sua admiração pelo autor dramático francês, Pierre CORNEILLE (1606-1684). Demais, alguns dos seus discursos, em forma de advocacia (defesa de uma causa) atingiram uma amplidão, um sopro impressionante e uma forte potência de emoção (Franz em les Séquestrés).
Possui, outrossim, o sentido da elipse, da montagem (o “flash-back” das Mains Sales inspirado do cinema e do autor dramático francês, Armand SALACROU – 1899-1989).
Enfim, manuseia, em virtuose, uma violência seca e sarcástica que é quiçá a marca mais característica da sua escrita teatral. Se as suas primeiras peças foram percebidas por um público “bien-pensant”, como provocações, SARTRE não pôde evitar que um consenso mole enrole nas suas peças, as mais serôdias.


Lisboa, 02 Maio de 2009
KWAME KONDÉ

SARTRE I

Perfil bio bibliográfico:


O filósofo, ensaísta, romancista e dramaturgo francês, de nome completo, Jean-Paul SARTRE, nascido na cidade de Paris, no ano de 1905, cidade onde veio a falecer, no ano de 1980 é o principal representante do existencialismo francês e principiou a ser conhecido do grande público logo após a II Guerra Mundial. Todavia, a fama rapidamente alcançada que fez dele o filósofo da moda, contribuiu, por outro lado, para deturpar, muitas vezes, o seu pensamento.
De feito, a sua obra, lida por poucos integralmente, tem sido interpretada, de modos assaz diversos, em particular a partir das suas obras dramáticas ou romanescas, outrossim, dos seus numerosos artigos ou, ainda de uma exposição muito sumária. Estamos a referir de O existencialismo é um humanismo (L’existentialisme est un humanisme, 1946).
Aluno da Escola Normal Superior, assistente de filosofia, SARTRE volta a tomar contacto, na Alemanha, com o pensamento dos seus primeiros mestres, KIERKGAARD, HEIDEGGER e HUSSERL, ao qual o seu ateísmo e a sua originalidade própria imprimem um desenvolvimento original.
Após L’Imaginaire (1940), seu primeiro estudo ensaístico, publica duas obras, L’Être et le Néant (1943), onde está contido o essencial do seu pensamento filosófico e a Critique de la raison dialectique, cujo primeiro tomo, Théorie des ensembles pratiques (1960), estabelece profundas conexões entre existencialismo e marxismo.

De anotar, que, na sequência de HEIDEGGER, que enunciava que “a essência do homem está na sua existência”, SARTRE afirma que “a existência precede a essência”, colocando, deste modo, o homem numa situação de que ele é, em última instância, responsável, sem que qualquer essência limite a sua liberdade. Donde e daí, resulta que en-soi, conjunto das condições do ser e do Mundo, é indeterminado e absurdo. Por outro, o pour-soi, consciência que o ser possui de si próprio, só se pode desenvolver na néantisation, que o distingue do en-soi ao fazer que o ser tome consciência de que ele é o seu próprio nada.
Com efeito, a consciencialização ora enunciada nasce do sentimento do absurdo do Mundo e da angústia que se associa a um poder de decisão ilimitado, que nenhuma ordem pode vir justificar. Deste modo, temos então, que no plano ético e moral, o homem só se pode realizar na escolha inevitável do seu destino, que, de modo algum, se pode reduzir às necessidades do seu desenvolvimento histórico, nem sequer, num mundo em que as liberdades se destroem e suscitam reciprocamente, onde os outros são o inferno, efectuar-se fora das entidades sociais.
No âmbito da prática e da pragmática respectiva, o magistério filosófico de Jean-Paul SARTRE, uma vez superada a ambiguidade das suas primeiras formulações, assume como corolário lógico a noção do compromisso e da acção, de que ele se fez o propagandista, ao tentar defender uma consciência revolucionária que, inicialmente identificada com a ideologia comunista, dela se separou após a revolta húngara, no longínquo ano de 1956. A partir de então, desenvolve a sua acção através de numerosas intervenções individuais.
Assim, no âmbito desta dinâmica e perspectiva, preside, no ano de 1967, ao “Tribunal Russell”, assumindo a partir de 1970 a direcção de publicações de extrema-esquerda cuja ideologia nem sempre controla, através das quais, todavia, procura assumir uma nova missão, que propõe aos intelectuais, ou seja: desaparecerem como tais em proveito das aspirações das massas.

Lisboa, 29 Abril 2009
KWAME KONDÉ